DA ARTE DA GUERRA … E DALLE INFINITE PAZZIE
Se for possível sintetizar o Renascimento numa imagem será pela do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, ele próprio um símbolo de valorização do ser humano em toda sua plenitude e da Arte como expressão, aliás, numa frase sua: “A Arte diz o indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível” e ao dizê-la coloca o ser humano como medida de todas as coisas e o artista como poeta e não como artesão. Nesse contexto pode parecer estranho Leonardo ter criado Máquinas de Guerra afinal destinadas à morte enquanto toda a sua filosofia se voltava para princípios éticos, culturais e sociais visando valorizar a vida e ao homem.
Lembremos que a atividade de Leonardo antes de 1482 é pouco conhecida e sua famosa carta a Ludovico Sforza, Il Moro, Duque de Milão é dessa época quando se oferece para realizar máquinas de guerra em um momento de luta pelos domínios territoriais e em que ele procurava acima de tudo um mecenas poderoso. O que se conhece hoje através dos Códices Atlântico, Arundel, Leicester, Forster e Madrid representam cerca de metade do que produziu, bastando dizer que entre 1489-90 foram 1508 projetos e possuímos hoje cerca de 15.000 desenhos entre esboços, projetos finalizados e estudos preparatórios.
Das máquinas de guerra poucas tiveram possibilidade prática como na sua obsessão pelo canhão de longo alcance de Arquimedes, o Archituono ou Architronito, funcionando com pressão de vapor na culatra e válvula de disparo que teria sido empregado no cerco de Siracusa em 202 a.C. Sua maior contribuição militar foi no estudo da balística, no desenvolvimento de projeteis ogivais e nas bombardas, morteiros de campanha, como armas de apoio à infantaria. Percebe-se no fundo intensa fantasia, nas palavras de Giorgio Vasari , primeiro historiador da arte em 1550: dalle infinite pazzie ( das loucuras infindas) em suas verdadeiras atividades lúdicas como nas festas por ele organizadas em Milão, quem sabe pensando em seus carros de guerra de perfis fantásticos se prestando ao domínio do jogo infantil, nos cortejos movendo-se no campo do imaginário e do artista como animador de um jogo destinado aqui a criar o medo e terror frente à precariedade da vida humana.
Ao criar arte os artistas assumem uma atitude lúdica, criam objetos como fins em si mesmos e não como meios para alcançar fins, as ações se traduzem em ânsia para dar significado à vida pela experiência do aprazível, simulam como as crianças ao dizerem vamos brincar! criando desse forma mundos imaginários.
No livro que acompanha essa exposição me detenho sobre o tema, fato é que Denis Soncini pela sua formação em engenharia mecânica se interessa pelas invenções de Leonardo que em sua maioria não saíram do papel, afinal L’Arte è cosa mentale!
Denis estudou esses desenhos, alguns em visão expandida, algo inédito desenvolvido por Leonardo, outros meros esboços, buscou a compreensão do funcionamento dessas máquinas, engrenagens, roldanas, fusos e travas não necessariamente visíveis e daí projetou plantas de execução, depois como modelista as executou em escalas diversas e num último momento criou gravuras dando vida às maquetes, fantasiou perspectivas gerando atmosfera tais como seriam vistas na realidade, releituras de uma leitura, a imagem no subconsciente aflorando nas conexões neurais depois de quinhentos anos de Leonardo tê-las imaginado e de Denis trazendo-as para nós depois de três anos de trabalho.
Diante de seu trabalho como miniaturista criando máquinas de guerra a partir dos desenhos de Leonardo pode advir uma questão estética, são manufaturas, artesanato erudito e como tal pode ser considerado arte? Houve por parte de Denis uma pergunta íntima: o modelo que fiz corresponde em si à concepção de Da Vinci, sua forma está de acordo com sua função, o design corresponde à finalidade?
Esse é um juízo de valor que sem dúvida ele fez, válido para um objeto que se adéqua harmoniosamente ao objetivo e vai além, é o belo na contemplação e por extensão induz ao pensamento e àquilo que chamamos “Arte”.
São Máquinas de Guerra essencialmente criadas para produzir morte e destruição, entretanto podem e devem ser vistas como Arte, a Arte pela Arte já nos dissera Aristóteles, uma vez que a Arte tem como objetivo único proporcionar prazer estético alheio a qualquer fim.
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Crítico de Arte (ABCA/AICA)