O que têm em comum H. G. Wells, Leon Tolstói, Arthur Conan Doyle, Tennessee Williams, Andy Warhol e Albert Einstein? Para além da produção intelectual, artística ou científica relevante, une-os o encanto manifesto, em tempos e contextos diversos, pela bicicleta, esse veículo de duas rodas também chamado afetivamente de magrela, bici, bike, camelo, entre tantas denominações que a imaginação de seus aficionados tem inventado ao longo desses pouco mais de cem anos de existência.
Povoando os textos de poetas diversos, como Toquinho, Vinícius de Moraes, Julio Cortázar ou Herberto Helder, a bicicleta se relaciona a um imaginário que remete à liberdade, ao equilíbrio e à aventura. Reminiscências de infância e de bons momentos vividos trazem, com frequência, imagens de trajetos pedalados ao vento. Mais recentemente, conceitos politicamente corretos, como mobilidade e ecologia, têm contribuído para que esse veículo, para além de sua dimensão utilitária, tenha se popularizado e constituído como símbolo de um estilo de vida que une saúde, prazer e responsabilidade social. Sobre uma bicicleta, as cidades parecem assumir dimensão mais humana. Com seu ritmo, a paisagem se move numa velocidade menos estonteante.
A mostra “Bicicleta”, de Eduardo Nascimento, evidencia um interesse também partilhado pelo mundo da arte, a exemplo de Picasso, Duchamp, Andy Warhol e mais recentemente o francês Alain Delorme, o chinês Ai Weiwei e a polonesa Olek, entre tantos outros, que voltaram sua atenção para esse objeto, seja pela sua materialidade, pelas relações que evoca ou por seus aspectos simbólicos ou conceituais. Nesse sentido, o tema escolhido para marcar os 40 anos da carreira desse artista merecedor de respeito e admiração não poderia ser mais feliz.
Décadas percorridas, milhares de “clicks” realizados, alguns temas recorrentes. Entre carnavais, festivais de inverno, cenas bucólicas da cidade natal ou registros de andanças pelo mundo, as magrelas têm tido sua vez. Ao revisitar seus arquivos, o artista as (re)descobriu: elas sempre estiveram lá, infiltradas no meio de outros temas e interesses, despontando aqui e ali.
São muitas as bicicletas flagradas por Eduardo Nascimento. Vermelhas, rosas, amarelas, novas, enferrujadas, “de verdade”, “de brinquedo” ou “de enfeite”, elas têm se instalado confortavelmente e com frequência no campo de visão do artista. As imagens com que ele nos brinda dão pistas de um olhar focado cujos detalhes nunca passam despercebidos. Como elemento constante, sobressai-se o refinamento estético que conduz a resultados em que enquadramentos precisos são indissociáveis de uma paleta cromática original e saborosa.
Muitos dos momentos captados pelas lentes sensíveis de Eduardo, Edu ou simplesmente Bó, como seus conterrâneos e amigos o chamam, tiveram lugar em Antonina, onde bicicletas não costumam fazer uso de correntes ou cadeados. Integradas ao ambiente, circulam livremente e podem ser encontradas tranquilamente estacionadas nas entradas das casas, nas portas das vendas, das farmácias ou escolas, à espera de seus parceiros de viagem.
Outros momentos, outros lugares, e mais imagens foram sendo adicionadas a essa coleção instigante e única, da qual vemos aqui apenas um pequeno fragmento. A partir das centenas de bicicletas observadas em 2008 no Lago de Como, Itália, citadas pelo artista como gatilho motivador da presente proposta, bicicletas e seus usuários têm sido eternizados em lugares por vezes tão perto, como a Ilha do Mel ou a Lapa, e por vezes mais distantes, como São Luiz e Barreirinha, no Maranhão, Gramado, no Rio Grande do Sul ou Manaus, no Amazonas.
Punta del Este, Santiago, Lima, Cusco, Havana, Lisboa, Milão, Roma, Florença, Paris e tantas outras cidades espalhadas pelo mundo também interessaram o olhar de Eduardo Nascimento com suas bicicletas amarradas em postes, encostadas nas árvores, equilibradas nos meios fios. Paradas ou em movimento, elas pontuam a solidão dos espaços urbanos e o ambiente conturbado de superfícies grafitadas, estando também inseridas nos parques, nas ruas, na beira dos mares e rios. O acaso uniu suas presenças momentâneas com a do fotógrafo em trânsito e as trouxe até nós.
Eduardo Nascimento nos emprestou seus olhos. Por meio deles, tornou possível que passeássemos por um mundo de bicicletas, levando-nos a imaginar, sonhar e refletir sobre a jornada da vida. Inevitável, cheia de percalços e surpresas, ela pode ter seu peso amenizado e tornar-se mais prazerosa se pudermos contar com ingredientes como a arte e umas boas pedaladas.
Curitiba, outubro de 2016